Uma das maiores preocupações mundiais em saúde é o aumento da resistência das bactérias aos tratamentos antimicrobianos existentes. As consequências do uso irracional de antibióticos se refletem não apenas no prolongamento da doença, no aumento da taxa de mortalidade, na permanência prolongada no ambiente hospitalar e a ineficácia dos tratamentos preventivos que comprometem toda a população, mas também no aumento do custo da saúde de forma geral. Dados publicados em 2018 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que o Brasil é o 19º país no ranking sobre o consumo de antibióticos em hospitais com dose diária por paciente. O consumo brasileiro supera os índices da Europa, Canadá e Japão, apontando o alto uso de antimicrobianos tanto no âmbito hospitalar, quanto na sociedade.
De acordo com a legislação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o gerenciamento do uso de antimicrobianos objetiva: garantir o efeito fármaco-terapêutico máximo; reduzir a ocorrência de eventos adversos (EA) nos pacientes; prevenir a seleção e a disseminação de microrganismos resistentes e diminuir os custos da assistência. A Anvisa defende que uma das ações destinadas ao controle do uso desses medicamentos é o diagnóstico, a seleção, a prescrição e a dispensação adequadas, entre outros.
As normas brasileiras, expedidas pela Anvisa, pretendem limitar o consumo, exigindo, para a compra do medicamento, a prescrição médica em duas vias, com sanções para as farmácias que venderem o produto sem seguir a diretriz. A iniciativa é positiva, mas ainda não é o suficiente. De acordo com a infectologista do Hospital Samaritano São Paulo e do Serviço de Controle de Infecções do Hospital AC Camargo, Bianca Grassi de Miranda, em razão da dificuldade de diagnóstico específico, alguns médicos fazem muitos tratamentos empíricos: “Isso faz com que haja um consumo maior de antibióticos do que se houvessem recursos diagnósticos disponíveis amplamente, tanto nos postos de saúde, nos prontos socorros, consultórios médicos e hospitais. Há situações em que é preciso definir se um paciente tem uma infecção bacteriana nova, que adquiriu dentro do ambiente hospitalar, ou uma infecção viral, uma reação medicamentosa, ou outra doença inflamatória. Com essa dificuldade de fazer o diagnóstico, na dúvida, o médico também trata com antibiótico”, explica.
Educação é a saída
As medidas educacionais nesse sentido são muito importantes, tanto dentro quanto fora do hospital, conscientizando as equipes que atendem populações que têm o potencial de ter infecções sobre a necessidade de ser racional no uso desses medicamentos. “Isso é o que os infectologistas e responsáveis pelo controle de infecção buscam hoje em dia: que o médico use o antibiótico de uma forma racional e que o indique somente em casos que, de fato, haja necessidade. Sabemos que o uso do antibiótico contribui para o aumento da resistência bacteriana”, afirma a médica. “Além disso, a população precisa entender que o antibiótico serve para tratar a infecção bacteriana apenas e que gripe, por exemplo, não é tratada com antibióticos”, ressalta ela.
Dentro de um hospital há uma série de medidas que podem ser tomadas: serviços de controle de infecção junto com as equipes de assistência, tanto da terapia intensiva quanto nas unidades de interação, contribuindo para a definição diagnóstica da patologia apresentadas pelos doentes; o trabalho do infectologista junto às demais especialidades; e com o farmacêutico clínico, que é capaz de avaliar dose, posologia e indicação de antibiótico. “Mais recentemente tem-se discutido também o papel da enfermagem em relação à administração de antimicrobianos”, diz Bianca de Miranda.
A criação de guias específicos, tanto de tratamento quanto de uso de medicações, também são diretrizes importantes para os hospitais. Os protocolos de tratamento das infecções devem ser bem definidos, de acordo com as melhores práticas e o perfil da instituição. Para a médica, é necessário que os hospitais tenham uma política para avaliar o uso racional de antibióticos. Nesse sentido, a acreditação, em especial da Joint Commission International, traz métodos de sistematização de processos com foco direcionado para o uso racional de antimicrobianos, seja ele direcionado para a farmácia clínica ou para a equipe médica do controle de infecção hospitalar. “A acreditação também reforça a necessidade de trazer a questão para a pauta diária do hospital, envolvendo a alta gestão das instituições no tocante à mensuração e controle de infecções”, ressalta.
Cresce custo do tratamento
O custo para o tratamento de bactérias mais resistentes é maior de maneira geral. Não apenas porque exige medicamentos mais modernos e elaborados, mas também porque aumenta o tempo de internação, exige mais exames sofisticados e drogas mais caras para tratar a doença. “Sem dúvida, o uso indiscriminado de antimicrobiano aumenta, como um todo, o custo total do cuidado, gerando um impacto no ambiente hospitalar, na vida do doente e em toda a linha e cadeia de cuidado”, aponta a infectologista.
O alerta também se estende aos antibióticos usados pela comunidade e os que são aplicados na indústria alimentícia, nas lavouras, em rações de animais. De acordo com infectologista, há relatos de contaminação de lençóis freáticos, de altas concentrações de antibiótico no solo, onde são plantados determinados vegetais, nas águas. “Isso faz com que as bactérias que estão no ambiente se tornem mais resistentes também. Então, mesmo que a infecção não tenha vindo da comunidade, é possível que a bactéria já esteja resistente por causa dos antibióticos utilizados na agropecuária”, salienta Bianca de Miranda.
Política pública nacional
A política pública nacional em relação ao uso racional de antimicrobianos tem pontos positivos e negativos, segundo a especialista. Apesar de conseguir limitar o uso do medicamento, há uma preocupação em relação às áreas em que não há acesso fácil a um médico. “Ainda existem decisões a serem tomadas como política pública, até porque não adianta restringir ou incentivar o uso de antibiótico. É preciso dar condição ao serviço de saúde para fazer diagnóstico correto. Hoje, as políticas públicas estão muito voltadas à prescrição e venda do antibiótico, o que é importante, mas ao mesmo tempo precisa se voltar ao que está por trás da prescrição, que é o diagnóstico correto das infecções, especialmente nos rincões do Brasil. É preciso pensar o acesso”, alerta.
A questão está começando a ser rediscutida no Brasil. A Anvisa realizou, em junho, o curso com o tema ‘Stewardship em hospitais: melhorando o gerenciamento dos antimicrobianos por meio da educação e da implementação de intervenções eficazes’, capacitando os profissionais. “O controle é muito mais efetivo nos Estados Unidos e Europa do que no Brasil, mas já foi dado um primeiro passo. Há níveis diferentes de maturidade nos diversos hospitais brasileiros. Mas o importante é trazer a discussão e fomentar o assunto”, ressalta a especialista.